2007-09-29

No cérebro de um disléxico

Por: Vítor Cruz (*)
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O que é a dislexia?

Na sua etimologia, a palavra "dislexia" é constituída pelos radicais "dis", que significa dificuldade ou distúrbio, e "lexia", que significa leitura no latim e linguagem no grego, ou seja, o termo dislexia refere-se a dificuldades na leitura ou a dificuldades na linguagem (Lerner, 2003). No entanto, a ideia de que se refere a um distúrbio na leitura parece ser aquela que é mais consensual (Lerner, 2003).

Deste modo, o termo dislexia é actualmente aceite como referindo-se a um subgrupo de desordens dentro do grupo das Dificuldades de Aprendizagem, mas que é frequentemente usado de um modo abusivo, pois tem sido dada a ideia incorrecta de que todos as pessoas com problemas de leitura, ou de instrução de um modo geral, têm dislexia (Kirk, Gallagher & Anastasiow, 1993, Rebelo, 1993, Morais, 1997, Caldas, 1999, Das et al., 2001, Vega, 2002).

Embora existam muitas definições e explicações, e não obstante as diferenças entre as várias definições, de acordo com as nossas leituras parecem existir aspectos de consenso. Ou seja, parece ser consensual que quando falamos em dislexia estamos a referir-nos a uma dificuldade primária para a leitura, devida a um funcionamento diferente do cérebro (que não está lesado), não existindo portanto uma causa aparente para o problema, aspecto este que está associado à exclusão de um conjunto de critérios eventualmente originadores de problemas na leitura. Por último há que referir um critério da discrepância, no qual se sugere que o problema que surge não é esperado.

A definição da Federação Mundial de Neurologia (1968, cito in Torres & Fernández, 2001, p. 5) parece ser a que melhor sintetiza os aspectos atrás referidos, pois sugere que a dislexia é "uma perturbação que se manifesta na dificuldade em aprender a ler, apesar de o ensino ser convencional, a inteligência adequada e as oportunidades socioculturais suficientes. Deve-se a uma incapacidade cognitiva fundamental, frequentemente de origem constitucional".

Como é que o cérebro lê as palavras?

Tendo em consideração que a maioria das definições sugerem que a dislexia presumivelmente se deve a alterações no sistema nervoso central, de seguida faremos uma breve abordagem ao que a literatura refere sobre os diferentes substratos neurológicos envolvidos na leitura, e suas funções nessa tarefa complexa.

Foi apoiando-se em trabalhos como o de Pierre Paul Broca e de Carl Wernicke que em 1979 Norman Geschwind apresentou um relato preciso do percurso através do córtex cerebral envolvido na leitura (Posner & Raichle, 2001). Assim, Geschwind sugere a existência de cinco áreas do córtex com funções diferentes na leitura, (Posner & Raichle, 2001).

A primeira é a área visual primária, local onde se realiza a percepção da imagem da palavra. Depois, na circunvolução angular ocorrem as fases iniciais da interpretação da palavra e o estímulo visual é convertido no seu significado linguístico. A terceira área é responsável pela compreensão do significado da palavra e é denominada por área de Wernicke. De seguida, a área de Broca recebe a informação sobre o que se vai dizer e planeia o tipo de movimentos técnicos necessários à produção da fala. Por último é do córtex motor que são enviados os comandos nervosos.

Usando técnicas sofisticadas para analisar o cérebro de crianças e adultos, mais recentemente os investigadores identificaram três regiões de fundamental importância, que o cérebro usa para analisar as palavras escritas, para reconhecer os seus sons constituintes e para automatizar o processo de leitura (Shaywitz, 2003).

Assim, Shaywitz (2003) diz-nos que para ler as pessoas usam três sistemas cerebrais, todos eles situados no hemisfério esquerdo do cérebro, aquele que é tradicionalmente associado à linguagem. A primeira área está na parte frontal do cérebro e é denominada de gírus frontal inferior ou área de Broca. As outras áreas situam-se na parte de trás do cérebro e são a região parieto-temporal e a região occipito-temporal, também denominada área de visão das formas das palavras.

De acordo com Shaywitz (2003), a área frontal inferior esquerda do cérebro (área de Broca), denominada pela autora de gerador de fonemas, é responsável pela articulação da linguagem falada, pois esta área do cérebro ajuda as pessoas a vocalizarem as palavras - em silêncio ou em voz alta. É uma área especialmente activa no cérebro dos leitores principiantes, pois também realiza a análise dos fonemas.

Por seu lado, a região parieto-temporal esquerda, denominada de analisador de palavras, está envolvida na análise e descodificação dos sons das partes das palavras, pois esta secção do cérebro realiza uma análise mais completa das palavras escritas. Na realidade, nesta área as palavras são divididas nas sílabas e fonemas ou as constituem, e as letras são associadas aos sons apropriados (Shaywitz, 2003).

Por último, a região occipito-temporal ou detector automático é o local onde toda a informação relacionada com as palavras e os sons é combinada, para que o leitor reconheça e leia a palavra de um modo instantâneo, ou seja, a tarefa desta parte do cérebro é a de automatizar o processo de reconhecimento das palavras (Shaywitz, 2003).

Resta referir que apesar de estes processos serem divididos numa sequência de três etapas para facilitar o seu entendimento, na realidade estas áreas do cérebro actuam de modo simultâneo e concertado, tal como acontece com as secções de uma orquestra (Shaywitz, 2003).

Com uma abordagem diferente, um outro trabalho digno de relevo é o recentemente desenvolvido por Nicolson & Fawcett, que sugerem a existência de um défice no cerebelo como hipótese explicativa da dislexia (Nicolson & Fawcett, 2000, Beaton, 2002, Bishop, 2002).

De acordo com os autores referidos, o cerebelo é uma estrutura que contém cerca de 50% do total dos neurónios do cérebro, que se situa na parte de trás deste e que faz o interface entre o córtex cerebral e o sistema motor (Nicolson & Fawcett, 2000, Beaton, 2002, Bishop, 2002).

Se por um lado é sabido que o cerebelo está envolvido na aquisição e execução das habilidades motoras, e que geralmente é considerado como um elemento central na automatização das habilidades motoras, por outro lado, trabalhos recentes demonstraram que o cerebelo também está directamente envolvido nas habilidades cognitivas relacionadas com a linguagem (Nicolson & Fawcett, 2000, Beaton, 2002, Bishop, 2002).

Assim, de acordo com a hipótese do défice cerebeloso proposta por Nicolson & Fawcett, alterações na estrutura do cerebelo das pessoas com dislexia originam alguns problemas na automatização das habilidades relacionadas com a linguagem, que originam de um modo directo os padrões de dificuldades dos disléxicos (Nicolson & Fawcett, 2000, Beaton, 2002, Bishop, 2002). Em conclusão, pensamos que independentemente das origens da dislexia, o que é fundamental é pensarmos nas melhores maneiras de ajudarmos estas pessoas a lidarem com essa sua maneira particular de percepcionar e entender os símbolos gráficos.
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(*) Professor Auxiliar na Unidade Científico-Pedagógica de Educação Especial e Reabilitação da Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa.

Referências bibliográficas

Beaton, A. A. (2002). Dyslexia and the Cerebellar Deficit Hypothesis. Cortex, 38, 479- 490.
Bishop, D. V. M. (2002). Cerebellar Abnormalities in Developmental Dyslexia: Cause, Correlate or Consequence? Cortex, 38, 491-498.
Caldas, A. C. (1999). A Herança de Franz Joseph Gall - O Cérebro ao Serviço do Comportamento Humano. Lisboa: McGraw-Hill.
Das, J. P., Garrido, M. A., González, M., Timoneda, C. & Pérez-Álvarez, F. (2001). Dislexia y Dificultades de Lectura: Una Guía para Maestros. Barcelona: Paidós.
Kirk, S. A., Gallagher, J. J. & Anastasiow, N. J. (1993). Educating Exceptional Children. Boston: Houghton MifflinCompany.
Lerner, J. W. (2003). Learning Disabilities: Theories, Diagnosis, and Teaching Strategies. Boston: Houghton MifflinCompany. Morais, J. (1997). A Arte de Ler – Psicologi Cognitiva da Leitura. Lisboa: Edições Cosmos.
Nicolson, R. I. & Fawcett, A. J. (2000). Long-term Learning in Dyslexic Children. European Journal of Cognitive Psychology, (12), 357-393.
Posner, M. I. &Raichle, M.E. (2001). Imagens da Mente. Porto: Porto Editora.
Rebelo, J. A. S. (1993). Dificuldades da Leitura e da Escrita em Alunos do Ensino Básico. Rio Tinto: Edições ASA.
Shaywitz, S. (2003). Overcaming Dyslexia: A New and Complete Science-Based Program for Overcaming Reading Problems at Any Levei. Knopf.
Torres, R. M. R. & Fernández, P. F. (2001). Dislexia, Disortografia e Disgrafia. Lisboa: McGraw-Hill.
Vega, F. C. (2002). Psicología de Ia Lectura: Diagnóstico y Tratamiento de los Transtornos de Lectura. Barcelona: Praxis.

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